No ano de 1524, um certo Álvaro Vaz Ribeiro, o Velho, morador na cidade do Porto, escreveu a seguinte nota, num livro que possuía (1):
“Jesus Maria
A 25 de Abril, sábado, recebi minha mulher Beatriz Eanes de Escapa, filha de João de Sam Miguel e de Beatriz Afonso de Escapa, no Porto, em 1524”
Com esta nota, Alvaro Vaz dava início a uma longa tradição familiar de registar os sucessos mais importantes da família – nascimentos, baptizados, casamentos e mortes – e ocasionalmente, terramotos ou idas para a Índia…
Com este casamento, Álvaro Vaz e Beatriz davam início a uma linhagem que terá na Casa de Nª Sª da Piedade, em Ponte de Lima, o seu solar. Mas será o seu filho herdeiro, Gaspar de São Miguel, o primeiro a estabelecer ligação a Ponte de Lima, onde casou e onde nascem os seus filhos:
“A 8 de Julho de 1557 esposei, e a 24 do mesmo, me casei com minha mulher Catarina de Mogueimas, por muitos anos para servir a Nosso Senhor, na igreja de Santa Maria de Ponte de Lima” – Gaspar de São Miguel. E logo a seguir:
“Em Ponte de Lima, em 9 d’ Agosto de 1558 nasceu meu primeiro filho Álvaro Vaz, o Moço.”
Muitos anos viveu para servir o Senhor, e viu “morrer a Pátria” e seu filho Gonçalo com el-rei D. Sebastião em África, e embarcar para a Índia seu filho Francisco e seu neto Filipe.
Em Ponte de Lima vivem dentro de muros, possivelmente nas casas compradas em 1573 à viúva de António Malheiro, por trás da alcáçova, na Rua doCastelo. São claramente “gens de robe” e não “gens d’epée”, possivelmente homens bons, e não fidalgos, a quem o burgo não permitia tomar casa dentro da muralha.. Gaspar exerce o cargo de escrivão da Correição em Ponte de Lima.
Viria Gaspar de São Miguel a morrer em 1635, com 109 anos. - conta feita à margem por seu filho Álvaro Vaz de Mogueimas, que nele escreve por sua vez:
“A 26 de Abril de 1577 jurei casar com minha mulher Isabel Rebelo Sampaio, estando presentes Gonçalo Mendes e António de São Miguel, meus tios” – assina Álvaro Vaz de Mogueimas. E segue:
“ Casei a 30 de Maio de 1577, sendo minha esposa filha de Filipe de Alvelos e de Mécia Velosa, na igreja de Santa Maria de Oliveira, Guimarães; e nos recebeu o chantre João Marçalo, e presentes o Mestre escola e Arcipreste e meus tios o Licenciado Gaspar Garcez, do Porto, Gonçalo Mendes, de Vila Nova, Baltazar de São Miguel, António de São Miguel, João de Amorim Feijó e outros muitos Senhores da mesma vila.”
Viria a casar mais duas vezes, mas só lhe sobrevive um filho, Gaspar de São Miguel, nascido a 4 de Abril de 1581, e baptizado na mesma igreja de Santa Maria de Oliveira. Este por sua vez casa em Ponte de Lima - “Recebi Ana Pacheco em 17 de Fevereiro de 1606, que nasceu a 10 de Junho de 1583.” – e tem dez filhos sucedendo-lhe seu filho Álvaro Vaz de Mogueimas, nascido a 23 de Outubro de 1628, segunda-feira.
É este Álvaro Vaz de Mogueimas quem vai nobilitar a quinta de Ponte de Lima, instituindo o morgado e ”… capela de Nossa Senhora do Monte da Piedade, que determino fazer junto aos portais da dita minha quinta, pegado ao cruzeiro, …” deixando “… já feita a Imagem desta Senhora, e esta será a que esteja no altar da dita capela, com toda a veneração, pela singular devoção que sempre lhe tive…”. Justifica este passo a importância que assume socialmente, por via do património acumulado, o cargo que exerce e o casamento que faz com a herdeira de António de Couros Carneiro, vereador e Juiz da Casa da Moeda do Porto, e senhor das Honras de Estromil, na Maia, e de Barbozas.
Álvaro Vaz de Mogueimas será pois Fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da Ordem de Cristo e herda de seu sogro as Honras de Estromil e de Barbozas. Vincula duas propriedades: a Casa do Cruzeiro em Ponte de Lima para seu filho mais velho, António de Couros Carneiro, e a Casa da Boavista em Refóios do Lima para seu segundo filho, Gaspar de São Miguel. Estas duas Casas irão manter fortes ligações familiares, e após a abolição dos vínculos, em 1863, é vontade da última Morgada que a Casa do Cruzeiro fique para a sua filha Francisca Rita, por ser casada com o Primo da Casa da Boavista, José Teixeira de Queiroz.
Mas para já estamos ainda nos finais do século XVII, depois duma Restauração que parece ter beneficiado a família na sua afirmação social. Álvaro Vaz de Mogueimas não chega a ver concluída a capela que institui, por testamento de 1689. De facto, “ tendo ido na Semana Santa a Braga, […] lá morre” em 1693, anota sua filha Catarina.
É pois seu filho, António de Couros Carneiro, nascido a 18 de Novembro de 1662, quem irá terminar a obra de construção da Capela, que está concluída em 1710. Fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da Ordem de Cristo, António renuncia ao ofício de Escrivão da Correição de Viana em 1696, mas acumula o cargo de Juiz da Casa da Moeda do Porto com a carreira de oficial de cavalaria.. De 1708 a 1735, António tem dezassete filhos de sua mulher e prima, Maria Luísa de Sá Sottomayor.
Mas a capela original não irá agradar ao seu filho, Vicente Álvaro Vaz de Mogueimas, que lhe sucede na Casa. Ou porque seja pobre o retábulo, ou de um barroco severo ao estilo nacional, Vicente Álvaro decide substituí-lo por um retábulo moderno, rococó. É nesta capela que casa:
“Em 17 de Junho 1751 casei com m.ª Prima D. Thomazia Perpétua de Sá Sottom.or e Amorim, na minha capela da casa e quinta do Monte da Piedade, e filha de Fabião de Pinto e Souza e de D. Maria de Sá Sottom.r, n’esta freguesia de S. Mamede de Arca“
Vicente Álvaro já não herda o cargo de Juiz da Casa da Moeda do Porto, extinta em 1721 por D. João V. Em 1760 leva à pia baptismal a seu primo da Casa da Boavista, Gaspar de Queiroz Gouveia Botelho de Almeida e Vasconcelos. As invasões francesas irão encontrá-los cinquenta anos mais tarde, ao primeiro, capitão-mor das Ordenanças de Ponte de Lima; ao segundo, sargento-mor das Ordenanças dos Arcos, ambos lutando em vão contra o caos social instalado, depois de ajudarem a repelir com sucesso a entrada de Soult pelo rio Minho.
Sucede a Vicente Álvaro seu filho António de Couros Carneiro Vasconcelos e Sottomayor, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Fidalgo da Casa Real; é ele quem desenha, em 1770, a árvore genealógica mais antiga existente na Casa..
António casa em 1808, já com cinquenta e seis anos, com D. Henriqueta de Brito, e a única filha que tem o casal, Maria José de Couros Carneiro e Vasconcelos, será a última Morgada da Casa. Órfã de Pai aos quatro anos, reza a tradição familiar que Maria José se subtraiu ao cerco apertado de um tutor interessado em casá-la com o filho, escrevendo com sumo de amoras uma mensagem de socorro a seu primo João Coelho de Castro Vilas-Boas, com quem casa aos treze anos na capela da Casa. É da mão deste a última entrada no livro da família:
“A Srª D.ª Maria José de Couros se recebeu comigo a 25 julho de 1826, na capella d’esta casa de Valle de Piedade, Quinta de Ponte de Lima “.
Hoje, cabe a seus bisnetos a responsabilidade de manter e acarinhar estas velhas paredes, e nelas manter vivas as memórias dos anseios, alegrias e realizações de seus antecessores que entre elas habitaram, “enquanto o Mundo durar” – como era vontade do Fundador.
(1) Seguimos a interpretação de Figueiredo Guerra, de 1923, recentemente publicada em A B Malheiro da Silva, L Pimenta de Castro Damásio, G Rego da Silva, 1993. Casas Armoriadas do Concelho dos Arcos de Valdevez, Vol.3. Edição da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez. Braga.
|